Imagine a seguinte situação:

Em um dia, compro duas unidades de um produto, e paguei R$4,00.

Dois dias depois, compro quatro unidades do mesmo produto, pagando R$8,00.

Como podemos expressar quanto pagarei em função da quantidade de unidades que comprei?

Pelo primeiro item, se pagamos R$ 4,00 por duas unidades, o preço da unidade será R$ 2,00, portanto, podemos solucionar o terceiro item pela expressão:

P(q)=2 · q

Onde P (q) é o preço a ser pago e q a quantidade de unidades compradas no dia correspondente. Simples, não? Encontramos uma lei matemática simples que descreve perfeitamente a situação proposta. Esse processo (muito simplificado pelo exemplo acima) é chamado de modelagem matemática.

Fonte: Do autor.

Nas ciências naturais, sociais e engenharias, é comum querermos descrever o comportamento de sistemas ou fenômenos em termos matemáticos, isto é, desenvolvemos um X que tenta aproximar uma situação real por uma lei matemática ou um conjunto delas. Em física, é comum modelarmos o comportamento de corpos em movimento; em biologia, o crescimento populacional de uma colônia de bactérias; em química, a quantidade de energia necessária para que uma reação aconteça, os exemplos são inúmeros. Quando criamos uma equação para descrever uma situação real no dia a dia, também estamos criando modelos matemáticos, como no exemplo descrito.

Através do modelo, podemos também fazer previsões sobre o comportamento do fenômeno estudado: ora, supondo que em um dia futuro eu desejo comprar 10 unidades do produto, e cada produto custa R$ 2,00, podemos prever que pagarei R$ 20,00, através da lei matemática que estabelecemos.

Porém, e se em um dia diferente o preço do produto aumentar? E se, em outro dia, existir uma promoção que diminua o preço? E se o imposto sobre o produto mudar? E se o produto acabar? Quanto mais aproximamos nosso simples modelo da realidade, percebemos que não estamos levando em conta todos os parâmetros, portanto nossa previsão de R$ 20,00 para 10 unidades não é totalmente confiável. Podemos enriquecer nosso modelo, adicionando novos parâmetros, aumentando seu grau de confiabilidade: quanto mais próximo da realidade, mais confiável será nosso modelo, e melhores serão nossas previsões. Teríamos que levar em conta a probabilidade de existirem promoções, a economia do país e até mesmo o humor do dono do estabelecimento.

Perceba que o nível de complexidade matemática aumenta de maneira assombrosa, até mesmo em uma situação aparentemente simples como o gasto de uma pessoa em um mercado.  É comum sermos bombardeados de dados e gráficos sobre a quantidade de casos de infectados por COVID-19, seja em noticiários, redes sociais ou pronunciamentos de governantes, órgãos públicos ou pesquisadores, não só apresentando ditos dados mas também extrapolando-os com previsões de quantos novos casos teremos no futuro. Ditas previsões, ao contrário do que pode parecer ao público geral, não são feitas inadvertidamente, mas sim com o auxílio de modelagem matemática, exatamente como fizemos no exemplo acima.

Podemos tentar modelar o problema do número de infectados de maneira simples: podemos imaginar simplesmente que o primeiro paciente transmite a doença para uma quantidade a de pessoas. Cada uma dessas a pessoas transmite para mais a pessoas e assim por diante. Tomando a = 2, podemos representar essa transmissão por um grafo simples:

Fonte: Do autor.

Se tomarmos cada nível desse grafo como um dia, perceba que no primeiro dia teremos apenas 1 infectado, no dia seguinte teremos mais 2, no terceiro mais 4, e assim por diante, sempre dobrando. Dessa forma, podemos definir que o número de novos infectados em um dia pode ser expresso como 2t, onde t representa o número de dias passados. Dessa forma, poderíamos ”prever” que no terceiro dia após o primeiro infectado, teríamos 23 = 8 novos infectados. Parece simples o suficiente, não? Poderíamos então comparar nosso modesto modelo com os dados conhecidos e verificar sua confiabilidade, correto? Bem, não. Primeiro, mesmo que uma aproximação exponencial possa ser a maneira mais simples que se adeque ao problema, encontramos uma gama de problemas com nosso modelo:

→ Assumimos que cada pessoa transmite para exatas duas pessoas. Essa suposição foi feita para facilitar a visualização do problema, mas é óbvio que esse número é variável: uma pessoa pode transmitir para nenhuma, uma, duas ou mais pessoas, isso depende da transmissividade do vírus em questão, além de inúmeros fatores sociais. Além disso, o vírus pode sofrer mutações que alterem suas características, incluindo sua transmissividade.

→ A origem da transmissão não é necessariamente única como supomos, nesse caso, teríamos mais do que um paciente zero, logo, mais casos novos para cada dia.

→ No 28º dia, nosso modelo diz que teremos 268.435.456 novos casos, isso é, cerca de 60 milhões de pessoas a mais que a população brasileira (2018). Isso significa que após 28 dias, teríamos, em um único dia, uma quantidade de novos infectados maior do que a população do país. Nosso modelo não prevê que exista um teto possível de casos.

Perceba que são questionamentos simples, mas que abalam completamente o modelo criado, assim como o modelo do preço do produto, mostrando o quão absurdos são nossas previsões. Isso significa que devemos descartar previsões completamente? Não! O objetivo desses dois exemplos é mostrar que criar um modelo matemático confiável é mais fácil dito do que feito, envolve inúmeras variáveis e deve ser sempre levado com certo ceticismo, de maneira que sempre enriqueça o modelo, melhorando sua confiabilidade e diminuindo sua expectativa de erro o quanto seja possível. Ambos os nossos exemplos tratam de situações simples, imagine o quão complexo é a modelagem matemática por trás de uma pandemia enquanto ela acontece.

O trabalho da estatística é apresentar estimativas, não prever o futuro. Identificar inconsistências em modelos e apresentá-las é completamente benéfico: significa que agora podemos alimentá-lo com essas inconsistências, corrigindo-as e criando um novo modelo que apresente melhores estimativas; logo, é realmente necessário que exista cautela com previsões e estimativas, mas definitivamente não devemos descartá-las completamente. Esse raciocínio, sendo importante ressaltar, não se limita ao estudo estatístico: é o método científico, nu e cru.

Escrito por Clayton Biscalchini.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MORETTIN, L.G. Estatística Básica vol. 2 – Inferência. 7. Ed. São Paulo: Pearson Makron Books, 1999.

ZILL, D. G.; CULLEN, M. R. Equações Diferenciais vol. 1. 3. Ed. São Paulo: Pearson Makron Books, 2001.

CHALMERS, A. F. O que é Ciência afinal?. São Paulo: Brasiliense, 1997.

HETHCOTE, H. W. The mathematics of infectious diseases. SIAM Review 42, p. 599–653, 2000.

MANCHEIN, C.; et al. Strong correlations between power-law growth of COVID-19 in four continents and the inefficiency of soft quarantine strategies. Disponível AQUI.