O coronavírus anuncia uma revolução no modo de vida que conhecemos1, e o mesmo pode ser verdadeiro em relação às teorias econômicas dominantes que fundamentam as políticas públicas executadas pelos governos. 

Neste contexto de pandemia, encontram-se na mídia diversas discussões que apontam para a existência de um dilema entre Saúde e Economia. O primeiro dilema que se apresenta é o de adotar medidas de isolamento social x paralisar a economia. Este primeiro impasse na maior parte do mundo está sendo resolvido em favor da saúde, isto é, as sociedades estão optando por salvar vidas ao invés de manter a atividade econômica. Para isso, os governos estão fechando os comércios não-essenciais e impondo regras para limitar a aglomeração humana. A escolha pela saúde, portanto, é certa. Contudo, surgem outras questões. Em primeiro lugar, de onde o governo vai tirar todo o dinheiro necessário à saúde? E em segundo, como amenizar ao máximo a futura recessão econômica? 

Do ponto de vista da teoria liberal, que domina o pensamento econômico desde meados dos anos 1970, a resposta para essas perguntas não é fácil. Na lógica de pensamento liberal, a intervenção governamental deve ser evitada ao máximo, pois pode facilmente distorcer o equilíbrio dos mercados, reduzindo a atividade econômica e alimentando a inflação. Além disso, com o gasto governamental, as contas públicas do governo podem ficar “no vermelho”, levando ao setor público fechar o ano com um chamado déficit fiscal. Desta forma, priorizar os gastos de saúde hoje, na lógica liberal, levaria a uma piora do cenário econômico de amanhã. Conciliar uma resposta satisfatória às duas questões colocadas não é fácil.

Entretanto, desde a Crise de 2008 o pensamento liberal vem sendo amplamente questionado, uma vez que resolução da crise só foi possível por meio de uma injeção gigantesca de dinheiro na economia por parte dos governos. Não houve inflação descontrolada subsequente e é consenso que a crise teria sido muito pior não fossem as intervenções dos governos. Além disso, muitos economistas amplamente reconhecidos vêm se manifestando publicamente a favor de se repensar as ideias do pensamento liberal. Um exemplo notável é o caso do ex-Diretor Geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), o francês Olivier Blanchard2. Desta forma, novas teorias econômicas apresentam melhores soluções teóricas aos desafios impostos pela pandemia do coronavírus, indicando que ao invés de estarmos presos em uma armadilha em forma de dilema entre saúde e economia, estamos, na verdade, presos em uma armadilha conceitual3 que inibe a construção de novas ideias. 

Para entendermos como novas teorias trazem soluções para os problemas postos aqui anteriormente, necessitamos primeiro desvendar uma concepção comum sobre as contas de um país: é preciso reconhecer que as contas do governo não funcionam – e nem devem funcionar – como as contas das famílias. Vamos imaginar o seguinte exemplo: suponha-se que você tem na sua casa uma máquina de imprimir notas de cem reais e que o governo te permite imprimi-las como bem quiser (isso é um exemplo hipotético, forjar dinheiro é crime). Diante disso, faria sentido que você planejasse suas finanças colocando o seu salário como o limite para os seus gastos mensais? Ou até, faria sentido você poupar parte do seu salário, tendo em vista que você poderia imprimir mais dinheiro quando bem quisesse? Pois bem, não faria muito sentido evitar gastar mais do que se ganha mensalmente, afinal, mesmo que você contraia diversos empréstimos, você pode, no final das contas, simplesmente imprimir mais dinheiro e pagar suas dívidas.

Esta situação descrita, dentro de alguns limites, representa a situação dos governos, visto que estes, no limite, não possuem restrição financeira. Em outras palavras, como eles emitem a sua própria moeda, eles não precisam arrecadar em impostos determinado valor antes de gastar. Não há necessidade de que exista uma reserva prévia. Não deve-se confundir, contudo, que se o governo não tem restrição financeira, tudo é permitido. Muito pelo contrário, os gastos do governo devem respeitar a capacidade de produção do país e serem analisados tendo em vista o real impacto deles na economia. Diante disso, a suposta necessidade de se manter as contas do governo “no verde”, isto é, de se arrecadar mais do que se gasta, pode ser deixada de lado, constituindo-se apenas em uma associação equivocada que fazemos entre nossas contas pessoais e as contas públicas. Não faça mais esta confusão!

Impressão de notas estadunidenses. Reprodução ORBO.

Entretanto, um ávido seguidor do pensamento econômico liberal logo colocaria a seguinte questão: “mas os gastos do governo não vão gerar inflação?”. A resposta para esta pergunta é: não exatamente. A inflação, ao contrário do que muitos pensam, não é resultado direto do aumento de moeda na economia. Se assim fosse, o método mais preciso para se medir a inflação seria por meio da simples contagem da quantidade de moeda circulando na economia4. Contudo, sabe-se bem que a relação entre quantidade de moeda e variação dos preços não é tão direta assim. De fato, muitos economistas afirmam atualmente que a moeda não provoca inflação e que esta é decorrente das expectativas das pessoas frente às pressões da demanda agregada sobre a capacidade de oferta da economia5. Pois então, inflação não é algo simples e acreditar que há uma relação direta entre gastos do governo e aumento da inflação é equivocado. 

Retornamos agora às nossas questões: como o governo financiará os gastos em saúde e evitará o colapso econômico futuro? A resposta se torna clara: criando o dinheiro suficiente para arcar com os gastos de saúde e para proteger os empregos e as empresas que estão paralisadas. A circulação de renda (como lucros e salários) na economia é como a circulação de sangue no corpo humano, de forma que o papel dos governos nesta situação de crise é manter o mínimo do fluxo sanguíneo. E é exatamente isto que governos do mundo todo vêm fazendo. Para citar um exemplo internacional, os Estados Unidos aprovou novos gastos de 2 trilhões de dólares para enfrentar a pandemia do coronavírus6. No Brasil, o governo tem se mostrado um pouco mais tímido, sendo o auxílio de R$600,00 disponibilizado para cerca de 26,9 milhões de brasileiros a ação mais enfática do governo nacional até o momento. Conforme indicado em pesquisa, essa ação do governo pode mitigar pouco mais de um terço dos impactos econômicos das paralisações e do isolamento social7. Desta forma, os governos vêm gastando para dar conta das demandas de saúde de hoje e proteger a atividade econômica de amanhã.

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Reprodução iStock.

Entretanto, no momento posterior à pandemia se faz necessário que estas novas ideias econômicas não sejam abandonadas, tal como aconteceu nos anos pós-crise de 2008 em que os governos logo voltaram a seguir as proposições da teoria liberal. Ao que tudo indica, a contração econômica atual não terá o formato de V, com um período de recessão seguido por um período de retomada, mas terá um formato de I, como uma queda livre8. Desta forma, o papel ativo do governo deverá continuar sendo o de canalizar apoio para boas oportunidades de investimento, atuando como um Estado empreendedor9, conduzindo a retomada econômica, guiando as expectativas e reduzindo as desigualdades.  A pandemia do coronavírus, portanto, expõe o calcanhar de aquiles das teorias econômicas dominantes. A resposta dos governos tem sido a de agir conforme novas teorias econômicas sugerem, abandonando ideias liberais, e tomando um papel de liderança frente aos desafios econômicos e da área da saúde da pandemia. A economista brasileira Monica de Bolle, em entrevista ao jornal El Pais, expressa bem todo este movimento atual ao dizer: “Hoje, dane-se o Estado mínimo, você precisa gastar. É preciso é errar pelo lado do excesso não para o lado da cautela numa crise desse tipo.”10. Assim como a Segunda Guerra Mundial produziu uma hegemonia do pensamento keynesiano que fundamentou o “Estado de bem-estar social” europeu, será que a pandemia do Coronavírus será capaz de feito semelhante?

 

Escrito por Gabriel Santos Carneiro

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

1.  DE MASI, Domenico. Coronavírus anuncia revolução no modo de vida que conhecemos. Folha de S. Paulo. Disponível AQUI.

2. BLANCHARD, Olivier. Public Debt and Low Interest Rates. American Economic Review. Vol. 109, n.4, p. 1197-1229. Disponível AQUI.

3. RESENDE, André Lara. André Lara Resende escreve sobre a crise da macroeconomia. Valor Econômico. Disponível AQUI.

4. BANCO CENTRAL DO BRASIL. O que é inflação. Disponível AQUI.

5. RESENDE, André Lara. Consenso e Contrassenso: déficit, dívida e previdência. Valor Econômico. Disponível AQUI.

6. CNN STAFF. What’s in the $2 trillion coronavirus stimulus bill. CNN. Disponível AQUI. 

7. FERNANDES, Anaïs. Ajuda alivia um terço de impactos sobre atividade, estima estudo da FGV. Valor Econômico. Disponível AQUI.

8. ROUBINI, Nouriel. A Greater Depression? Project Syndicate. Disponível AQUI.

9. MAZZUCATO, Mariana. Capitalism’s Triple Crisis. Project Syndicate. Disponível AQUI. 

10. DE BOLLE, Monica. Monica De Bolle: “Hoje, dane-se o Estado mínimo, é preciso gastar e errar pelo lado do excesso”. El Pais Brasil: 01 de Abril de 2020. Entrevista concedida a Heloísa Mendonça. Disponível AQUI.