Dia 01 de Dezembro de 2019, mercado de Hunan, Wuhan, China. Em algum momento entre este dia e o dia 31 do mesmo mês, teríamos o início de uma mudança colossal no modo em que viveríamos e estamos vivendo.

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Morcego, possível reservatório de COVID-19. Reprodução Creative Commons.

Em todas as culturas, o consumo alimentar é diferenciado e, também para todas, os insumos que são dados como alimentos não são usuais. Não é à toa que após os surtos iniciais do Novo Coronavírus, a comunidade chinesa, injustamente, foi extremamente atacada por inúmeras ofensas xenofóbicas, relativas ao seu consumo ‘estranho’ de morcegos. Para entendermos isso, vamos entrar nas questões biológicas do assunto.

Quando falamos de coronavírus, não estamos apenas considerando o Novo Coronavírus, causador da COVID-19 (Coronavirus Infectious Disease, ou Doença Infecciosa causada por Coronavírus, em português), mas sim de uma família de vírus conhecida desde o início do século passado. Essa família já possuiu inúmeros vírus que causaram doenças complicadas, tanto em humanos (como a SARS, Síndrome Respiratória Aguda Grave e a MERS, Síndrome Respiratória do Oriente Médio), quanto em animais (em felinos e canídeos, por exemplo), além de vários tipos causarem, no ser humano, resfriados, assim como os Rinovírus.

Contudo, esse novo tipo, extremamente relacionado com o causador da SARS, em 2003, possui dois complicadores: (i) é um vírus novo, ao qual nenhum ser humano tinha tido contato, ou seja, nenhum ser humano possuía imunidade contra ele; (ii) é um vírus que ataca fortemente células do pulmão, causando insuficiência pulmonar e morte.

Eating of pangolin and bats banned amid COVID-19 pandemic ...
Pangolim, possível reservatório de COVID-19. Reprodução Philippine Star.

Os casos de xenofobia que envolveram a pandemia de COVID-19 vieram pela má análise de um artigo extremamente interessante publicado pela prestigiada revista científica Nature, com uma pesquisa que explorava as origens desse Novo Coronavírus.

Neste artigo, intitulado The proximal origin of SARS-CoV-2 (A origem proximal do SARS-CoV-2, em tradução livre), os pesquisadores fazem uma análise de comparação entre partes do material genético desse tipo de coronavírus, em morcegos, pangolins e humanos. A partir desta análise, trouxeram à tona seus achados, de que o vírus não foi produzido de modo artificial, mas provém dos morcegos ou pangolins e que é provável que a contaminação no ser humano tenha sido através do uso destes animais como meio de alimentação.

 

Semelhança entre os materiais genéticos dos morcegos, pangolins e seres humanos. Em azul, parte do material genético do Coronavírus, com a região que produz uma proteína de interesse; Em rosa, uma ampliação da região que produz a proteína de interesse e suas duas subunidades analisadas; (a) análise comparativa entre uma região da subunidade 1;
(b) análise comparativa entre uma região da subunidade 2: no estudo verificado, vê-se uma semelhança de 91% do vírus encontrado em pangolins, comparado ao vírus que infecta o ser humano; em relação aos morcegos, há uma semelhança de 96%. Adaptado de Virological Organization.

Logicamente, a questão colocada não deve ser relacionada com a cultura de comunidades chinesas, mas sim com o consumo indevido de animais silvestres. E não precisamos ir longe para verificar isso.

“Quando Jesus desceu do monte, uma grande multidão o seguiu. Então, um homem com lepra aproximou-se dele e, ajoelhando-se, disse:

— Eu sei que, se quiser, o senhor pode curar-me.

Jesus estendeu a mão, tocou nele e disse:

— Eu quero; fique curado!

E, no mesmo instante, a lepra desapareceu.”

(Evangelho de Mateus, cap. 8, 1 – 3, Bíblia Sagrada)

Desde a Idade do Ferro, a lepra (hanseníase, nos dias atuais) foi uma mazela que assolou a sociedade. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, são cerca de três milhões de pessoas afetadas pela doença no mundo, sendo 23 mil casos apenas no Brasil, no período de 2017. Sua origem? Os tatus*.

Ameaçado de extinção, tatu gigante é flagrado passeando em avenida ...Tatu-gigante, *reservatório de hanseníase. Reprodução G1 – Globo.

A hanseníase é uma doença causada por uma bactéria, a Mycobacterium leprae (micobactéria causadora da lepra) e, entre os anos de 2004 a 2009, causou a morte de quase 1.500 pessoas em território nacional. Possui alto contágio, principalmente quando há o contato direto das feridas do enfermo com uma pessoa sadia, considerando que a doença possui como principal sintoma úlceras na pele.

No Brasil, mais de 50% das espécies de tatu possuem o material genético da bactéria causadora da hanseníase; em conjunto, o consumo de tatus, principalmente nas regiões norte e nordeste do país, é alto, o que correlaciona esse consumo à alta quantidade de casos de hanseníase na região.

Assim, podemos aqui estabelecer uma relação e realizar uma pergunta:

Epidemias causadas por bactérias, vírus e afins podem surgir em qualquer local, principalmente aqueles relacionados com a venda e consumo incorreto de carne de animais exóticos, não abrindo espaço assim para xenofobia. Assim como a pandemia a qual vivemos se iniciou na China, outras futuras pandemias podem se originar de outros lugares como, por exemplo, o Brasil.

Observando esse ponto, será que não seria uma boa hora para repensarmos nossa alimentação?

Escrito por Leandro Teodoro Júnior.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Araújo, M.G. Hanseníase no Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. 36(3):373-382, mai-jun, 2003. Disponível AQUI.

GenBank. Severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 isolate Wuhan-Hu-1, complete genome. Disponível AQUI.

Koroiva, R. Por que os cientistas acreditam que o SARS-CoV-2 COVID-19 teve origem nos morcegos e nos pangolins? – Exercício prático. Disponível AQUI.

Rocha, M.C.N.; et al. Óbitos registrados com causa básica hanseníase no Brasil: uso do relacionamento de bases de dados para melhoria da informação. Ciênc. saúde coletiva, 20 (4) Abr. 2015. Disponível AQUI.

SBMT. Hanseníase: Tatus da Amazônia apresentam risco à população humana, alertam Dr. John Spencer e Dr. Moises Silva. Disponível AQUI.