Como se produz uma vacina

Leandro Teodoro Júnior

Entre as mais variadas e complexas tecnologias que o desenvolvimento científico nos trouxe, a vacina certamente é a mais comentada no último ano. Desde a descoberta de que espécimes atenuadas de patógenos poderiam propiciar uma ativação do sistema de defesa humano, fornecendo a proteção necessária contra o “patógeno real”, o mundo pode se ver livre, em pouco mais de 100 anos, de doenças que assolaram populações inteiras, ceifando milhões de vidas.

Criança infectada com varíola, em Bangladesh. Reprodução Wikimedia Commons.

A produção de vacinas segue o conceito básico de proteção natural do organismo: quando somos atingidos por algum patógeno, o corpo inicia seus mecanismos de defesa, em uma ação coordenada de células presentes no sangue que recebem o nome de sistema imune. O sistema imune, dentre seus vários mecanismos de ação, desenvolve a produção de anticorpos, moléculas que atuam de modo a neutralizar e destruir o agente causador da doença. Contudo, além da produção de anticorpos, algumas das células que os produzem memorizam quem as afetou. Essas células ficam guardadas no organismo humano, às vezes por meses, às vezes pela vida inteira. Assim, caso o mesmo agente infeccioso tente se restabelecer no organismo, o corpo possui seus guardas de prontidão, destruindo o patógeno antes dele causar a doença. A vacina nada mais é que um sistema que utiliza patógenos mortos ou muito fracos para causarem a doença, mas que servem para ativar esse mecanismo de memória do corpo, garantindo assim a proteção do organismo sem deixá-lo ser afetado pela condição.

Mecanismo de memória imunológica. Caso ocorra uma reinfecção, o corpo ativa seu mecanismo protetor rapidamente. Adaptado de MEDBullets.

Nos casos de vacinas feitas com patógenos atenuados , é necessário “fazer” esse patógeno. Para isso se utilizam seres vivos com proximidade do ser humano, como roedores, coelhos e macacos. Com o organismo-modelo escolhido, se insere o patógeno humano em questão no animal, deixando assim o agente se reproduzir por gerações. Como esse tipo de processo é feito com patógenos que afetam exclusivamente o ser humano, a contaminação proposital em outros animais não trará efeitos nocivos a eles e como o animal não tem a mesma fisiologia do ser humano, o agente infeccioso sofrerá mudanças, fator que diminuirá sua potência patológica no organismo humano.

Organismos-modelo são animais que, devido sua similaridade com o ser humano ou devido características interessantes para pesquisa, são utilizados em diversos ensaios clínicos e de estudos sobre doenças, genética etc. Adaptado de ImunnoBites.


Com as amostras dos agentes atenuados feitas, o processo que se sucede se utiliza de culturas de células in vitro ou de tecidos e estruturas vivas completas para replicação controlada do patógeno atenuado. Em culturas in vitro, as células que os patógenos atenuados irão parasitar são colocadas em meios ricos em nutrientes; com isso, as condições ótimas de replicação viabilizam uma boa concentração do agente. Entre os métodos que utilizam estruturas vivas, o principal é feito a partir do uso de embriões de galinha, ou seja, ovos fecundados.

Estrutura embrionária de um ovo de galinha. Reprodução Casa dos Pássaros.

Após o crescimento, o conteúdo geral é purificado, obtendo-se apenas o fluido de alta concentração do agente infeccioso atenuado. Esse fluido então é separado em pequenas doses (geralmente 1 mL é utilizado na fabricação de 400 doses vacinais) e nele é adicionado excipientes diversos como antibióticos (que impedem o crescimento de bactérias na vacina final), formaldeído (capaz de neutralizar toxinas bacterianas), sais de alumínio (que atuam como assistentes da promoção da resposta imune, permitindo respostas de defesa mais acentuadas), estabilizadores (que aumentam a vida útil de uma vacina), thimerosal (composto com íons de mercúrio em baixíssima quantidade que atuam na preservação da vacina e impede o crescimento de bactérias de alto potencial nocivo) e diluentes (que diluem a vacina para a concentração adequada para sua administração).

Para as vacinas que utilizam o patógeno morto , o processo de atenuação não ocorre. Assim, a inoculação do patógeno em ovos fecundados ou em culturas celulares é a primeira etapa de produção. A diferença é que, antes de submeter a amostra aos excipientes, o agente infeccioso precisa ser morto (inativado). Para isso, geralmente são utilizados métodos físicos ou químicos, como o aumento de temperatura, uso de formaldeído ou de detergentes.

Um dos mecanismos de obtenção de vírus inativados, por meio de irradiação de raio-x. Esse processo mantém os antígenos intactos, estimulando o processo de defesa, mas com degradação do material genético, impedindo a replicação viral. Adaptado de Precision X-Ray.

O processo de fabricação de vacinas deve seguir seis princípios básicos: deve custar pouco, ter fácil armazenamento (com temperaturas entre 2 – 8 ºC, de preferência), ser estável, possuir poucas reações adversas, garantir proteção distinguível da infecção natural e ser viável para o uso em massa. Uma outra recomendação é em relação à eficácia geral da vacina: a Organização Mundial da Saúde recomenda que esta seja de 50%, no mínimo, considerando a mais alta variedade de pessoas no estudo.

Tecnologias relativamente novas fogem do padrão principal de produção de vacinas por meio de patógenos atenuados ou mortos. Muitas vacinas são feitas de forma combinada, juntando mais de um tipo de patógeno atenuado ou morto na sua produção; é o caso da vacina DTP (tríplice bacteriana, que protege contra difteria, coqueluche e tétano). Outras são feitas a partir de partes do agente patogênico, como proteínas ou carboidratos de sua estrutura, que podem gerar também de modo efetivo a resposta de defesa do corpo. De qualquer modo, a tecnologia de produção de uma vacina, desde seu desenvolvimento até a liberação pelos órgãos regulatórios mundiais para administração em massa é um processo que leva décadas para ocorrer. A pandemia de COVID-19 trouxe à humanidade uma catástrofe sem precedentes, contudo também mostrou a força do método científico e da verdadeira ciência e tecnologia aplicada, com produções de vacinas em tempo recorde.


REFERÊNCIAS

ABBAS, A. Imunologia Clínica. Elsevier, 2017.

COVID-19 Vaccine Tracker, 2020 – 2021. Disponível em < https://covid19.trackvaccines.org/vaccines/7/>.

LEAL, M.L.F. Desenvolvimento Tecnológico de Vacinas em Bio-Manguinhos/ FIOCRUZ: Uma Proposta de Gestão. ENSP, FIOCRUZ, 2004. Disponível em < https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/4840/2/685.pdf>.

MIYAKI, C. Entenda como é produzida uma vacina: Vacina de influenza, Instituto Butantan. ASCOM ABC, 2013. Disponível em < http://www.abc.org.br/IMG/pdf/doc-4906.pdf>.

PALACIOS, R., et al.. Clinical Trial of Efficacy and Safety of Sinovac’s Adsorbed COVID-19 (Inactivated) Vaccine in Healthcare Professionals (PROFISCOV). NHI | Clinical Trials, 2020. Disponível em < https://clinicaltrials.gov/ct2/show/NCT04456595>.